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Os autistas são pouco sociáveis ou é apenas um mito?

09/04/2024

Para responder satisfatoriamente a essa pergunta, devemos primeiro entender que o autismo é um espectro; não há duas pessoas autistas iguais, da mesma forma que não encontraremos duas pessoas neurotípicas com as mesmas características. Existem autistas extremamente caóticos e desorganizados (apesar do estereótipo generalizado do autista perfeccionista e com muita atenção aos detalhes), e há outros autistas que preferem ter tudo perfeitamente organizado para que possam ficar mais calmos no seu dia a dia. E isso funciona assim em muitas outras áreas ou fases da vida: na necessidade de antecipação, na rigidez cognitiva, na regulação emocional, na resolução de conflitos… e, claro, também nas habilidades sociais e na necessidade de socializar com outros indivíduos. É verdade que todos os autistas, em maior ou menor grau, divergem da norma, mas todos nós fazemos isso de formas muito diferentes; alguns têm sérios problemas para manter uma conversa em grupo, e outros podem falar “demais”, se atendermos ao que as normas capacitistas desta sociedade nos ditam (autistas muito diretos, ou que falam por muito tempo sobre um tema específico de interesse). Por que, então, muitas vezes se pensa que os autistas são muito introspectivos e preferem a solidão ao companheirismo? É simplesmente um mito ou há alguma explicação real por trás dessa afirmação?

Habilidades sociais e problemas de comunicação

O problema da socialização para a comunidade autista se volta à infância. Não conheço nenhuma pessoa autista que, de fato, afirma ter se sentido confortável, ouvida e integrada quando era pequena (e especialmente na adolescência, quando a necessidade de ter um grupo unido e coeso é o mais importante). Por que isso acontece, se já afirmamos que existem pessoas autistas muito sociáveis que realmente querem ter um grupo de amigos? A resposta tem a ver com uma forma diferente de processar as informações (os estímulos externos, gestos dos outros, ruído de fundo, conversas em grupo) e, consequentemente, de uma forma diferente de comunicar e estabelecer vínculos com os outros. É muito comum encontrar pessoas autistas que, desde a infância, se sentem mal compreendidas, “fora do lugar”. E é muito fácil entender por que, se atendermos à nossa hipersensibilidade (ou às vezes hiposensibilidade) a estímulos externos. O contato visual muitas vezes nos sobrecarrega (é provável que notemos uma gota de suor na testa, ou tentamos decifrar expressões faciais, e perdemos o fluxo da conversa), a improvisação nos custa muito (quando é a minha vez de falar? O que deveria dizer nessa situação?), conversas triviais nos aborrecem e parecem extremamente desconfortáveis ??(por que as pessoas falam constantemente sobre o tempo, ou sobre coisas que não lhes interessam genuinamente?), e as conversas simultâneas são um conflito quando se trata de discriminar quem devemos ouvir, quais são as informações relevantes ou como atender duas ou três pessoas ao mesmo tempo. Obviamente todos esses exemplos são generalizações (já dissemos que não há dois autistas iguais), mas todos temos desafios no campo da comunicação, e isso é algo que percebemos desde muito pequenos. Na infância não estamos muito conscientes dessas diferenças, mas, inconscientemente, começamos a imitar os outros, a copiar gestos e atitudes que vemos recompensados (pelos professores, por exemplo), sair para o pátio mesmo que não tenhamos vontade porque todos eles fazem isso e, assim, nos adaptamos a um ambiente que parece hostil, mesmo sem saber o porquê. Neste processo (chamado de masking ou camuflagem) nossa identidade se confunde em detrimento do comportamento dominante, que é o do restante do grupo. E isso também acontece em autistas sociáveis que, devido a uma forma diferente de entender o mundo e se comunicar, não encontram apenas uma resposta positiva de seu ambiente. No final, muitos de nós entramos na adolescência com a autoestima danificada, com um rastro de bullying nas costas (às vezes sutil, às vezes muito mais explícito), odiando nossa sensibilidade ou nosso hiperfoco ou nossas estereotipias (porque nos levam a ser mais um dentro do grupo, que é aquilo que, em muitas ocasiões, queremos com toda a nossa força), e sem saber quem somos ou se é legítimo e válido preservar nossas particularidades em um mundo que não as entende ou as aceita como é devido.

Diagnóstico e/ou autoconhecimento

Se o diagnóstico vem na infância, é muito mais fácil para as crianças autistas terem o apoio e adaptações adequadas para se gerirem melhor na sociedade, embora, apesar disso, continuem encontrando desafios e dificuldades na comunicação com os outros. É provável que, devido a esse diagnóstico precoce, possíveis casos de abuso por terceiros possam ser detectados mais cedo, e que a criança receba acompanhamento ideal em seu processo de compreensão dos outros sem esquecer, e isso é muito importante, suas próprias particularidades, talentos e características que o tornam único e especial. Por outro lado, se os autistas não recebem esse afeto e cuidado desde a infância (ou seja, se ninguém nos lembra que ser autista é bom, que não há nada de errado com isso), é muito mais provável que, em vez de valorizar nossas próprias características como algo positivo, tentaremos reprimpi-las, negá-las ou mesmo destruí-las, e tudo isso com o único propósito de se encaixar em um grupo e parecer o mais neurotípico possível. É quando aparecem as condições simultâneas do autismo, em muitos casos: ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, etc. Devemos entender que muitos desses problemas não são inerentes ao autismo, mas são dados por uma sociedade capacitista que não aceita a diferença e que nos condena ao ostracismo muito mais do que gostaríamos. Com o diagnóstico e/ou autoconhecimento de nós mesmos, podemos começar a exigir mudanças. Não somos mais os que estamos quebrados ou defeituosos, mas simplesmente temos uma maneira diferente de codificar estímulos externos e, portanto, reagir a eles. Mas temos a mesma habilidade de habitar o mundo como neurotípicos. É neste ponto que começamos a nos sentir fortes para estabelecer limites, pedir adaptações (em, por exemplo, nosso local de trabalho) e explicar aos outros como nos sentimos ou por que reagimos de determinadas maneiras. Aprender a amar a nós mesmos novamente é um processo, às vezes muito difícil, mas todos nós merecemos sentir essa paz de espírito no nosso dia a dia.

Existem autistas sociáveis? Sim, muitos.

Voltamos agora à questão do início: por que existe o mito do autista introspectivo, se de fato existem muitos autistas extremamente sociáveis? Em grande parte, isso se deve a essas particularidades na forma como nos comunicamos, que dificultam nosso objetivo: criar laços fortes e duradouros com os outros, como deseja qualquer outro neurotípico. Tanto o autista solitário quanto o autista sociável quase sempre se encontram, ao longo de suas vidas, com risos e zombarias por parte de seus pares, com negligência por parte dos profissionais (professores, médicos ou psicólogos que nos tratam com condescendência ou ceticismo, especialmente as pessoas percebidas como mulheres durante o processo de socialização), com constantes desqualificações em relação a nós (muitas vezes somos muito “desajeitados”, ou focamos muito em nossos temas de interesse, ou somos excessivamente rígidos em nossas rotinas, sempre do ponto de vista neurotípico), ou com manipulação (parar de falar uns com os outros, nos isolarmos conscientemente dos grupos) e bullying ou assédio moral no trabalho por causa de nossas diferenças. Qual é o verdadeiro problema, então? O tratamento que recebemos da sociedade. Seria até compreensível que a pessoa autista mais sociável do mundo renunciasse voluntariamente para se relacionar com os outros se várias das situações discutidas acima convergissem sobre ela. Como pode ser inferido a partir disso, o autista pode ser extremamente sociável e tentar insistentemente tecer laços com um grupo de amigos, mas o desprezo constante e/ou falhas nesse objetivo podem levar à frustração e a um sentimento de inutilidade que dificultará, ainda mais, seu processo de adaptação ao mundo. Mas o autista sociável ainda está lá, o desejo de socializar faz parte de sua identidade, ele simplesmente precisa de uma pequena ajuda; neurotípicos também têm que tecer pontes, aproximar sua mão da nossa, nos perguntar se esse bar que escolhemos passar a tarde é muito barulhento, nos tratar com gentileza quando expressamos coisas que nos envergonham, respeitar nossas rotinas, nos explicar explicitamente piadas ou trocadilhos que não entendemos pela nossa literalidade, nos deixar espaço para falar sem interrupções, entender que não precisamos de contato visual (às vezes, inclusive, é até violento para nós) para ouvir com atenção, e, em suma, nos perguntar o que precisamos para nos sentir à vontade. Este é o tratamento que deveríamos receber em todas as fases de nossa vida para poder melhorar esse lado sociável que muitos de nós carregamos.

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